quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Eleições

O texto abaixo publicado não é meu, mas poderia ser: eis as minhas razões para seguir votando 13, apesar dos erros e das críticas. Não é um texto curto, mas vale a pena ler inteiro, sobre o projeto de país que está em questão. Voto na Dilma porque acredito na sua concepção de Brasil, e não na concepção tucana. É a concepção tucana de política que eu não endosso de forma alguma, e não é Serra ou Aécio ou Alckmin ou quem quer que seja que vai fazer eu votar 45.
Não alterei em nada o texto, só grifei.


Carta aberta a quem interessar possa. Muito interessante, mas sou suspeito para falar. Sugiro que leiam e tirem as próprias conclusões.

Pois é. Depois de muitas conversas e discussões na verdade muito menos acaloradas do que deveriam ser sobre nossas eleições de 2010, fiquei hoje a pensar se não valeria a pena escrever um breve texto resumindo minha posição política atual, expondo os pontos que me levam a optar inequivocamente por um lado, que ficará bastante claro ao longo do texto. Por que me dar ao trabalho? Porque alguém sempre pode ler e pensar: “Olha… Não é que o que aquele cara diz faz algum sentido?”. Porque se isso servir nem que seja para as pessoas procurarem saber mais sobre as questõeslevantadas, já estaremos todos no lucro. Porque não posso deixar de fornecer a pessoas muito mais apaixonadas do que eu, ainda que talvez não tão firmes no posicionamento político, argumentos com os quais se tranquilizar, defender ou dos quais se valer em eventuais rusgas retóricas. 
O que está em jogo para o país nessas eleições? A resposta é bem clara para quem tiver olhos para ver: um projeto de país, um modelo do que o Estado deve ser, que papel ele deve desempenhar e que papel o Estado brasileiro deve desempenhar em sua relação com os demais Estados. Guiando esses projetos contrastantes estão, evidentemente, os sistemas de valores que embasam, sobre os quais também pode valer a pena discorrer. No entanto, primeiro aos pontos. 
O Brasil segue hoje um rumo econômico tão saudável quanto é possível em uma economia capitalista em fase de capitalização. Éramos um país sem planos para cultivar um excedente de capital, sem uma política para atender à camada de recursos circulantes além das grandes artérias do setor primário, das iniciativas governamentais e das indústrias de bens de consumo. Das grandes artérias, duas eram portas de saída (uma de matérias primas cujo valor não agregado nos custaria mais tarde, outra de capital líquido na forma do lucro puro e simples, jamais reaplicado aqui), garantindo que a sangria fosse sempre maior que a capacidade de nutrir um corpo (e uma quantidade de corpos) que, embora tenha desacelerado, jamais parou de crescer. A camada de recursos circulante corresponde aos bens e serviços produzidos/prestados em pequena e média escala, aos profissionais liberais formais e informais e aos assalariados que contam apenas como engrenagens (hemáceas?) nas três artérias, cujo crescimento jamais foi um objetivo, mas sempre um efeito colateral da hipertrofia de uma delas, de aneurismas exportadores baratos, governamentais redundantes ou supranacionais maliciosos. 
Temos hoje um Estado que visa, ainda que de forma deveras aperfeiçoável, a criação dessa tão etérea camada, o mercado interno. Mas isso já não foi feito antes? Sim, mas nunca a partir de décadas de tentativa e erro, de experiências em partes distintas do mundo, de como fazê-lo a partir da base. O mercado interno do “crescer para depois dividir” falhou, assim como o dos “50 anos em 5”, ambos por terem imaginado que a geração de um consumo “qualificado” do meio para cima da pirâmide faria surgir automaticamente uma base que “prestasse serviços ao topo”. Sabemos hoje, como sabiam apenas alguns então, de quantas formas isso poderia dar (e deu) errado. Sabemos hoje que uma economia não se constrói com massas parasitando uma nata, batalhando pelas migalhas que caem, sonhando um dia poder se vangloriar de ver a importância de suas próprias migalhas, uma trilha de farelos de consumo para marcar sua passagem pela floresta social.  
É, sim, necessário construir a partir da base. Os programas de renda mínima são uma forma de fazê-lo. São uma forma de fazer o capital girar onde ele não tem escolha. Quem recebe R$ 200,00 ou gasta ou jejua. É um mercado compulsório, que antes sofria de estagnação compulsória. As críticas à política de renda mínima são previsíveis, fruto de uma matriz de valores que nesse caso, antes de ter sua legitimidade discutida, deve ser denunciada como contrária aos interesses dos que a têm em tão alta conta. Afinal, o bem-assalariado que reclama do uso de seus impostos para financiar a renda mínima do tão mal-assalariado que sua renda sequer chegava… bem… à mínima… ignora ou escolhe ignorar alguns fatos. A renda mínima pode fazer (e frequentemente faz) a diferença para que quem a recebe: adquira alimentos (setor no qual o bem-assalariado talvez trabalhe), roupas (setor no qual o bem-assalariado talvez trabalhe), material de construção (setor no qual o bem-assalariado talvez trabalhe), ferramentas de trabalho (setor no qual o bem-assalariado talvez trabalhe), um ou outro bem de consumo (setor no qual o bem-assalariado talvez trabalhe); utilize mais transporte (setor no qual o bem-assalariado talvez trabalhe), ou um ou outro serviço (setor no qual o bem-assalariado talvez trabalhe); quem sabe até mesmo resolva conseguir algum crédito (setor no qual o bem-assalariado talvez trabalhe)… É economicamente vantajoso fazer o capital circular na base. Dividir para depois crescer funciona melhor. Claro. Tudo em pequena escala. No entanto, de modo geral, a vida é algo que acontece em pequena escala, e a grande escala só é medida por quantas pequenas escalas ela é capaz de afetar. Pois bem. Uma observação atenta de três mapas publicados pelo Estado de São Paulo pode dar uma ideia de quão grande foi a escala dessas pequenas escalas. O real efeito dessa concessão de capital (e, portanto, poder) a tantos ao mesmo tempo só será sentido em uma ou duas décadas. O Brasil está se capitalizando, tanto com capital líquido quanto investido, e começar de baixo é o melhor caminho.  
Um parágrafo especialmente dedicado à crítica moral. A ética capitalista de cunho protestante urbano europeu, laicizada ao longo dos últimos dois séculos, ensina uma certa ojeriza ao ganho sem trabalho. Embora o sonho de grande parte da população seja ter grandes ganhos sem trabalho, pequenos ganhos sem trabalho parecem muito mais ofensivos. Seria um caso de matar um, ser assassino; matar milhões, ser um herói? Talvez, mas o mais importante é que, de modo geral, quem recebe também aprendeu uma ética de trabalho e, (abre conjectura) embora talvez sinta menos culpa pelo ócio (fecha conjectura), não sente menos orgulho do fruto do trabalho. Em suma, em lugares em que foram implantados programas de renda mínima, no Brasil ou em outros lugares, o percentual dos beneficiários que se conformou com a renda mínima e não partiu dela para a atividade econômica é baixo. Bolsa, especialmente em valores baixos, não deixa o bolsista acomodado: dá ao bolsista o impulso para, depois de algum tempo, deixar de precisar da bolsa. Essa é uma premissa básica do Estado brasileiro hoje, e é bom, mesmo indiretamente para quem discorda dela, que continue a ser e que seja apenas expandida e complementada com incentivos à permanência e ao investimento local do capital.  
O Brasil se encontra hoje em uma posição internacional singular. Ao adotar uma política internacional que abre espaço para discursos não hegemônicos e tenta operar na prática a partir de uma igualdade sempre tida como apenas teórica e ideal entre os Estados, o Brasil conseguiu estar na tropa de choque da abertura diplomática das instâncias decisórias da comunidade internacional. Ao se recusar a se alinhar, mantendo-se fiel à tendência histórica, o Brasil se pôr como um dos poucos interlocutores universais possíveis. A maior inconveniência que os “menos favorecidos” podem criar é resolver cobrar todas as promessas que a estrutura idealizada da comunidade internacional lhes faz. E é exatamente isso que a postura diplomática do Brasil faz hoje. Expõe as contradições entre a promessa e a realidade e se apresenta como meio termo, a realidade mais próxima da promessa: um país que pode exercer a força, mas em diversas circunstâncias escolhe não fazê-lo (Bolívia e Equador quanto às empresas, Irã, Paraguai quanto à tensão com os brasileiros, até mesmo os EUA quanto à retaliação comercial). É uma posição não apenas benéfica para o mundo, mas comercialmente benéfica para o Brasil, cujas portas de relações permanecem abertas. Certamente mais interessante do que apenas fazer número na esfera dos EUA.  
Um alinhamento mais forte com os EUA hoje, por exemplo, teria desequilibrado e elevado as tensões na América Latina, precipitando crises com os Estados que foram se alinhando em uma esquerda de matriz mais ou menos neossocialista. É uma esquerda que não tem condições de se sustentar no Brasil, mas que o governo de centro é capaz de aceitar como alternativa válida no processo democrático. Um governo de direita provavelmente não teria as mesmas preocupações com a estabilidade latinoamericana. E lá se iriam as relações com a Bolívia, o Equador, a Venezuela, o Paraguai, precipitando a polarização contra Colômbia, fortemente alinhada com os EUA, Chile, um Brasil de direita e talvez a Argentina, algo que não serviria aos interesses de nenhum dos lados.  
O Brasil está hoje em processo de aprofundamento de relações militares com a França. Faz sentido. Os franceses têm um know-how militar que corre o risco de desaparecer se não tiverem para quem vendê-lo. O Brasil precisa de um know-how militar no qual basear o desenvolvimento de sua própria indústria de defesa para os próximos 30 anos. A consequência é óbvia, especialmente levando em conta o novo posicionamento internacional do Brasil, explicado antes. Detalhe adicional: temos dois países fronteiriços em discreta, mas firme, corrida armamentista: Colômbia e Venezuela, com equipamentos respectivamente americanos e russos (que se recusaram a transferir a tecnologia de seus caças no FX2…). Um conflito, mesmo que de pequena escala, não está descartado para os próximos 10 anos. Sobrando para o território brasileiro, como operar entre dois países amigos com autonomia se o fornecimento militar de um deles impactar o seu e vice-versa? É necessária uma terceira via. No caso dos caças, por exemplo, os suecos não conseguiriam, por mais potencial que seu equipamento tenha. Motivo? À exceção dos franceses, os europeus adotaram com muito menos restrições fornecedores americanos para aumentar as escalas, padronizar os desempenhos e diminuir os custos. Ainda haveria dependência indireta. A não ser que haja uma surpresa fenomenal na reta finalíssima, na briga dos caças já ganharam os franceses antes mesmo de começar. Também na política de defesa, não se poderia esperar o mesmo de um governo da direita.  
O Brasil está hoje em processo de expansão do funcionalismo público? Na verdade, apenas de recuperação do que foi extirpado da máquina estatal nos anos da direita. Com uma economia maior, o estado precisa estar mais presente, não apenas como regulador externo, mas como regulador interno (a principal função das empresas públicas sem monopólio: ditar ou ao menos influenciar fortemente o ritmo do mercado, com sua capacidade de abrir mão dos lucros quando a iniciativa privada não o faria) 
O Brasil; está hoje formando mais profissionais. Fato. O mérito do aumento do acesso ao ensino superior (também público) é inegável. Falta, é claro, re(?)aparelhar o ensino público com profissionais e condições de trabalho não precárias (com estabilidade e concessão de financiamento por programa e instituição, e não por projeto) que possam ir além dos centros de excelência. Acontecerá com a continuidade do centro no poder? Não sei. Certamente não com a direita.  
O Brasil tem hoje um governo corrupto? Certamente. alternativa para um governo livre de desonestidade, que faça cumprir rigorosamente as leis, que não faça concessão ao fisiologismo grassante na política? Talvez em Marte. E certamente não com a direita. 
Falta ao eleitorado, e especialmente ao eleitorado teoricamente esclarecido, a maturidade intelectual democrática para aceitar que não há como extirpar a corrupção dos aparelhos de poder. Ela é natural dos aparelhos de poder, e sem eles não existiria. Só pode ser combatida quando aparece. É a única coisa a fazer. Com um governo de direita e uma grande imprensa de direita, não tenho certeza de que apareceria. A imprensa também faz parte da estrutura de poder político, e enxergá-la à parte é ingenuidade ou autoilusão.  
É um “rouba, mas faz?” Não. É um “Faz. É lamentável que roube. Pague pois, por isso. Mas que o projeto continue andando e que alguém continue fazendo.” O bem-estar da população é mais importante do que poder usar os governantes como exemplo mítico canonizável de virtude. Neste caso, felizmente não há exemplo mítico canonizável de virtude na direita. Minha consciência se preserva minimamente.
E, por fim, aos valores, porque são quase 3 da manhã. Nada dde valores religiosos, por favor. O Estado deve ser sem deus para que todos possam comungar com seus deuses em paz, assim como em paz escolher não comungar com ninguém. Valores laicos, que são a verdadeira questão do pleito. 
 
O valor da direita é o da elite. Não a zelite, mas a elite meritocrática. Aquele que obteve sucesso o mereceu. O mundo é hostil, e os que nele se sobressaem têm o direito de colher frutos que os demais não colhem. O que se deve fazer pelos menos bem-sucedidos é dar a eles chances para que possam também triunfar na selva, sendo então com júbilo recebidos no seio de seus novos pares, os bons. É o valor do vencedor, da competição, dos vícios privados que produzem virtudes públicas. Para a direita, o vencedor não pode ser culpabilizado pelo destino do perdedor.  
Poderia argumentar aqui que nem sempre o que percebemos como sucesso vem acompanhado do que percebemos como mérito; que o mundo não é necessariamente hostil, e a hostilidade é uma característica que projetamos nele; que no mundo há tantos casos de cooperação quanto de competição, e que competição para cooperar sempre dá frutos melhores do que cooperação para competir; que a colheita de frutos que os outros não colhem deixa menos frutos para serem colhidos, gerando, assim, uma hostilidade artificial; que simplesmente atirar novamente as pessoas na selva vai gerar inevitavelmente alguns tigres e muitas carcaças; que os novos pares do novo bem-sucedido nem sempre o receberão de braços abertos, e que haverá entre os bons mais e infinitas guerras para encontrar o melhor; que o vencedor não tem mérito em si, pois só existe no âmbito da competição, que, quer entre os melhores, quer entre os piores, por sua própria natureza sempre produzirá um vencedor e diversos perdedores; que os vícios privados não produzem virtudes públicas, mas neuroses públicas, que, por sua estabilidade, podem às vezes por décadas ser confundidas com virtudes, até que finalmente falham estrondosamente (como as alianças falharam em impedir a primeira guerra, o liberalismo falhou em impedir as crises do capitalismo, como a ambição e certo progresso tecnocientífico que dela deriva falharam em conceber os remédios para seus próprios males); que não há vencedor sem perdedor, Rocinha sem São Conrado, Jardim Ângela sem Interlagos. Poderia, mas náo vou.
Vou simplesmente dizer que os valores e políticas da direita são egoístas e suicidas demais para mim. Por isso, enfim, vou de 13.

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